terça-feira, 21 de agosto de 2007

Não deixemos que nos decepcionem

Costumo dizer entre os amigos que a “grande imprensa não decepciona”. Explico-me. O uso corrente da palavra decepção tem o sentido de desapontamento, frustração. Por isso, a afirmação pode passar a idéia que estou sempre de acordo com o que diz a grande imprensa. O que não é verdade, claro. Acontece que a palavra decepção vem do latim deceptio, que quer dizer engano. Ou seja, para sentir-se decepcionado, é preciso que se tenha expectativas, positivas ou não, e que estas não sejam correspondidas. Como as minhas expectativas sobre a grande imprensa brasileira não são das melhores – e não o são por acaso – ela não me decepciona, não me engana.

Esta semana, no entanto, pensei estar a beira de uma decepção. Há alguns meses fiquei sabendo que repórteres do jornal O Globo estavam fazendo uma série de matérias sobre favela e violência. Esperei o pior, claro. Principalmente, depois da cobertura dada à recente operação no Complexo do Alemão. A isso, junte-se o tratamento que o jornal dá a questão das remoções, defendo-as abertamente, como política de urbanização.

Foi, portanto, esperando o pior, que sentei-me para ler o jornal de domingo (19/08), quando foi publicado a primeira matéria da série. Fiquei surpresa com o que li. Contrariando minhas expectativas, a reportagem era bastante completa, tinha fontes diversas – o comum é que a polícia seja a única fonte – e não continha os corriqueiros estereótipos que corroboram a criminalização da pobreza. Uma coisa que me chamou a atenção, foi que os jornalistas tocaram de forma clara e direta numa das feridas que mais incomodam o governo do Estado quando se fala em segurança pública, a violência e corrupção policial. Ainda que o governo teime em tratar os casos de policiais violentos ou corruptos como exceção, sabe-se que não é bem assim. E isso ficou claro quando reportagem mostrou que em alguns casos os moradores se sentem mais ameaçados pela polícia do que por organizações criminosas.

Como há muito não acontecia, fiquei satisfeita com o que li no jornal. Mas, ainda era cedo para dizer que me decepcionei. Afinal, tratava-se de uma série de matérias e aquela era só a primeira. Qualquer conclusão só deveria ser feita no próximo domingo. Acontece que não deu para esperar. Apresso-me para escrever sobre o tema, pois o jornal de hoje acabou com minhas boas impressões.

A reportagem, como nos dias anteriores, está excelente. Isso se deve, principalmente, aos bons depoimentos que tratam do tema central da matéria: moradores de favelas que passam a viver exilados.

A coisa começou a mudar quando li, na capa, a manchete: “Quando fugir da favela é a única solução”. E logo abaixo: “Tráfico leva moradores ao exílio”. Primeiro equívoco. Não é apenas o tráfico que faz com que moradores de favela tenham que fugir de suas casas e viver escondidos. A afirmação omite, também, o fato de que muitos moradores fogem e não podem sequer denunciar seus agressores à polícia, pois correm o risco de serem entregues por ela. A chamada persiste no erro, citando apenas o tráfico como grande vilão e conclui com uma fala do governador Sérgio Cabral: “essas atrocidades mostradas pelo Globo são reais. Esse poder paralelo é selvagem”.

Concordo plenamente com o governador. O poder paralelo é selvagem. E o poder do Estado seria o que, então? Será que o governador acha pouco essa selvageria e por isso manda o caveirão? Será que o governador só ficou sabendo dessas atrocidades pelo Globo? Será que ele ainda acha que policiais bandidos são coisa rara? Quantas atrocidades, como a do Alemão, o governador pretende cometer para acabar com as atrocidades reais?

Fiquei incomodada com a capa do jornal. Sabemos que a maioria das pessoas não lêem as reportagens, lêem apenas os títulos. Com a chamada, a manchete e a fala do governador, o jornal, mais uma vez, legitima a política de confronto, definindo as favelas como um espaço que serve de reduto para criminosos e justificando ações de extermínio da polícia. Se a lógica é de guerra, as mortes passam a ser tratadas como efeito colateral, um mal necessário. É esta a lógica do Estado e defendida pela imprensa.

Lógica que é defendida de forma escancarada no editorial desta edição. A primeira frase mostra bem o que vem pela frente: “Embora seja uma doença urbana disseminada pelo país, a favelização virou a cara do Rio”. Mais abaixo o jornal conclui que “a favela nada tem de romântico e idílico. Mora-se quase sempre mal (...)”. Fico imaginando quantas vezes o cidadão que escreveu este texto, foi a uma favela para fazê-lo com tamanha certeza. Não é preciso morar na favela para enxergar o belo que há nelas, para admirar a alegria, a criatividade e solidariedade que há entre os moradores – bem diferente do individualismo que reina nos condomínios da zona sul.

A expressão “doença urbana” mostra bem o lugar de quem escreveu. É doença para a elite racista que mora de frente para a praia e é o patrão que explora os trabalhadores que vivem nas favelas. É doença para a classe média imbecil deste país, os “papagaios de telejornal” que querem “que se exploda a periferia toda”, como bem resume a música de Max Gonzaga – o clip está no Youtube e Capilo já postou aqui.

De resto, o próprio jornal se desmente. Algumas páginas depois, na coluna do Ancelmo Gois, podemos ver dados de uma pesquisa feita pela professora Alba Zaluar. A pesquisa revela que 85% dos moradores de favela não gostariam de deixar sua comunidade. Se a mesma pergunta fosse feita em bairros de classe média, este número jamais seria tão alto. Afinal, Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca são o sonho de consumo de “todo mundo”. Ou quase todo mundo, como mostra a pesquisa. Mas, como pode a favela não ter nada “de romântico” e tanta gente gostar de morar nela? Contradições da grande mídia. Ou melhor, mentiras da grande mídia.

O que o editorial do Globo faz, é defender a política do governo do Estado, a política da elite, que a classe média avaliza, sonhando um dia morar na Vieira Souto. Para isso, o jornal usa, como argumento, a realidade cruel a qual os moradores de favela são submetidos. Pois, são eles as principais vítimas, não só da violência, mas da ausência do poder público, da exploração do trabalho e da concentração de renda. Para O Globo, o problema da nossa sociedade resume-se a existência de favelas. É o ditador da mídia questionando a ditadura nas comunidade populares. É o jornal burguês fazendo-se de paladino dos pobres favelados. Com certeza, a grande mídia não me decepciona.

Um comentário:

F A V E L E I R O disse...

VOCÊ NÃO ME DECEPCIONA! MUITO BOM, CLEMENTINA!