Eu queria (do verbo não vou) escrever sobre minhas andanças hospitalares nas últimas semanas e os diagnósticos que vão de viroses à estafa num minuto. Mas não dá.
Me explico. No domingo fui ao Canecão (casa de shows) e assim que sentei, notei uma família na mesa ao lado. Reparei na família porque os filhos me pareciam muito novos para o espetáculo e depois, porque o pai, mesmo estando de costas para mim, era uma figura fácil de reconhecer. Fiquei incomodada com a presença daquele homem ali. Loucura da minha cabeça, claro. Mas no fim, não conseguia não olhar pra ele, não pensar na imagem que tanto vejo na televisão, no sotaque marcante e nas mortes espetaculares, sempre seguidas de desculpas.
Quando acabou a peça, meio que sem querer, eu e o secretário de segurança, José Mariano Beltrame, nos encaramos. Fiquei tentando imaginar o que ele pensou naquele momento, algo do gênero: "opa, ela me reconheceu. Claro, tem pinta de quem mora na Zona Sul, se sente mais segura agora que tem um secretário de pulso firme, que sabe que um tiro em Copacabana não é a mesma coisa que um tiro no Alemão". E aí me deu vontade de dizer pra ele, pra deixar claro, que eu o reconheci, óbvio, mas que não o admirava.
Bom, só que eu não disse nada. Fiquei incomodada com a presença dele do meu lado. Cruzamos olhares por alguns segundos. E foi só. Deixei que dentro da minha cabeça meus sentimentos se misturassem a meus pensamentos e por ali ficassem.
Pois bem. No outro dia de manhã descubro que enquanto eu, José Mariano Beltrame, os filhos dele e sua esposa nos divertíamos no Canecão, tomávamos um vinho e ríamos das piadas do tal espetáculo, os subordinados do secretário - um grupo de policiais - perseguiam um carro na Tijuca. O carro perseguido ultrapassou o automóvel de uma senhora que voltava pra casa com seus dois filhos. Esta senhora parou quando percebeu a perseguição. A polícia também. Parou e abriu fogo, acertando o carro dela com 16 tiros. 16 tiros num carro que tinha uma mulher e duas crianças. 3 desses tiros atingiram um garoto de 3 anos que morreu. O resto da história a gente nem precisava ver pra saber. O pai desesperado no Jornal Nacional e todos os outros atos de uma cobertura espetacular. A polícia inventando explicações absurdas, querendo culpar a mulher. A intervenção firme do governador, dizendo que faz parte da 'guerra', que policiais 'despreparados' são exceções e serão punidos. E finalmente, o secretário de segurança na televisão pedindo desculpas. Daí lembrei porque essa figura me causa tanta repugnância.
Eu já escrevi sobre o tema diversas vezes, eu sei. Chego a ser repetitiva. Mas não entendo como ainda é possível tratar casos como esse com a simples explicação de 'despreparo da polícia'. Não é. Nunca foi. Nem no Rio, nem em lugar nenhum. O Estado tenta até aonde a cara de pau aguenta e a mídia ajuda até não poder mais, e juntos isolam casos, tratam como exceções, personificando aquilo que é resultado de ações coletivas. Como se as mortes fossem fruto da ação deste ou daquele que é uma maçã podre. Isso é a mais suja estratégia para encobrir a lógica que toma conta dia após dia das ruas dessa cidade.
O que aconteceu na Tijuca, no domingo, acontece todo dia em algum lugar do Rio de Janeiro. A diferença é que existem territórios onde a polícia é 'autorizada' a abrir fogo, sob a benção do Estado e da sociedade, valendo-se de uma fantasiosa 'guerra contra o tráfico'. É essa a perspectiva de ação da PM do Rio de Janeiro. É com essa intenção que todo dia funcionam batalhões e delegacias. Os policiais que mataram o garoto podiam ser outros, mas a atuação provavelmente seria a mesma. Porque não se trata de vontade própria, se trata de uma política, de uma forma de atuação institucional. Política esta que é tocada pelo meu vizinho de mesa do Canecão juntamente com o governador celebridade.
Morrem mais de 500 pessoas por mês nesta cidade. Nós não sabemos nem da metade dessas mortes. Mas a tendência é que saibamos cada vez mais. Porque é ingenuidade achar que a barbárie seria um privilégio da periferia. Digo mais, uma hora ela cruza o túnel, não tenho dúvida (ou já cruzou, se pensarmos no PM que matou o garoto na porta da Baronetti). A lógica de que o Estado pode matar indiscriminadamente já foi aceita por todos nós. Nós já dissemos sim quando concordamos que bandido bom é bandido morto ou aceitamos que pobres podem morrer se a polícia estiver perseguindo bandido. Agora, é só esperar, porque cedo ou tarde, numa esquina perto de você, pode acontecer uma megaoperação ou uma megaperseguição. E aí, vendo nossos sonhos, desejos e amores ameaçados, talvez consigamos pensar por um instante que vivemos numa coletividade.
Mãos Dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
homens presentes,
a vida presente.
(Carlos Drummond de Andrade)
2 comentários:
Clê, ao invés de comentar o que é sem comentários, lhe parabenizo pelo texto: excelente!
não li texto. só a li a primeira frase. não começa a falar de doença, porque, quando eu comecei, não parei por uns 6 meses.
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