domingo, 24 de fevereiro de 2008

A renúncia de Fidel Castro e as implicações para a América Latina.















Entrevista especial com Emir Sader


Aos 81 anos, sendo 49 deles no poder, Fidel Castro anunciou ontem (19/02/08) sua renúncia ao cargo de Presidente da República de Cuba. Afastado dele desde 2006, devido a complicações no seu estado de saúde, Fidel começou sua luta pela transformação da sociedade cubana bastante jovem. Depois de se graduar em Direito, pela Universidade de Havana, intensificou sua luta contra o governo cubano, denunciando as corrupções e atos ilegais cometidos pelo poder. O golpe de estado de 1952 o convenceu sobre a necessidade de buscar novas formas de ação para transformar o país. Para realizar a Revolução Cubana, em 1955 foi até os Estados Unidos em busca de apoio dos emigrantes cubanos. Com os combatentes reunidos, dirigiu-se à Sierra Maestra, onde permaneceram por dois anos à frente do Exército Rebelde Cubano. Fidel, então, guiou a tática e a estratégia da luta contra a ditadura batistiana, financiada e apoiada pelos estadunidenses. Em 8 de janeiro de 1959, marchou até Havana e consolidou a vitória da Revolução. Por mais que sofresse um embargo econômico dos Estados Unidos e, depois, com o fim do regime socialista na URSS, Fidel manteve-se a frente de Cuba até o dia 1 de agosto de 2006. Nesta data, delegou o seu cargo ao irmão, Raul Castro.

Muitos aguardavam sua renúncia, outros não esperavam por tal notícia, tanto que os maiores jornais do Brasil não noticiaram o fato em suas primeiras edições do dia. Ao povo, Fidel diz em sua carta-renúncia: "Prepará-lo para a minha ausência, psicológica e politicamente, era minha obrigação depois de tantos anos de luta. Nunca deixei de assinalar que se tratava de uma recuperação 'não isenta de riscos'. Meu desejo sempre foi de cumprir o dever até o último alento. É o que posso oferecer”.

Para repercutir o assunto, a IHU On-Line conversou, por telefone, com o doutor em Ciências Políticas Emir Sader, que nos atendeu por telefone desde a Bolívia, onde participa de um congresso. Atualmente, Sader atua como coordenador do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais e é professor da Universidade de Oxford e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pensando na perspectiva da esquerda latino-americana e mundial, quais são os aspectos do pensamento de Fidel que o senhor considera ainda hoje pertinentes?

Emir Sader – Pode-se falar de uma esquerda latino-americana de antes e depois de Cuba e Fidel. Ele introduziu a questão do socialismo no coração da América Latina, na vigilância dos Estados Unidos. Também introduziu questões fundamentais, como a de que apenas uma sociedade não fundada no mercado pode terminar com o analfabetismo, universalizar direitos de saúde, de educação e culturais para toda a população. Isso tudo fazendo com que um pequeno país sem grandes produtos de exportação, com baixo valor de carteira no mercado internacional, pudesse ter a projeção que teve. Essa é a posição interna. Cuba acredita que deve seguir sendo o país mais solidário do mundo, uma referência em saúde no mundo todo e o que tem mais médicos trabalhando ativamente fora do país. Isso para não falar na escola latino-americana de Medicina, que está formando as primeiras gerações de médicos pobres, provenientes inclusive do Brasil. Possui também a Operação Milagro, que é a recuperação de milhões de latino-americanos de forma gratuita. A sociedade cubana tem um grande espírito de solidariedade totalmente contraditório com o espírito mercantil que o capitalismo difunde pelo mundo afora. Então, o Fidel é um marco da história da América Latina, da história da periferia do capitalismo.

IHU On-Line – O que significa a renúncia de Fidel para a América Latina?

Emir Sader – Na verdade, a renúncia veio a partir de uma transição, pois o Fidel foi deixando aos poucos de assumir funções. A renúncia foi só uma formalização. Significa que a América Latina hoje não pode preferir Cuba. Na verdade, ela tem outros regimes que estão construindo sociedades alternativas, como Equador, Bolívia, Venezuela, e que estão na esteira, no caminho que foi plantado por Fidel. Então, a atualização dele hoje é a atualização presente, por exemplo, na ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), em que se constrói a experiência mais avançada, aquela que o Fórum Social Mundial pregava: a de um comércio justo, em que cada país oferece o que tem e recebe o que necessita, e assim por diante. Tudo isso feito a partir desse espírito de solidariedade que contém. Então, o Fidel se retira, mas a presença do que ele sonhou é constante, ou seja, continua contemporâneo na América Latina. Esse é um final de carreira digno de quem construiu uma trajetória extraordinária.

IHU On-Line – Podemos esperar algum tipo de mudança na forma de Raul Castro conduzir a política cubana e as articulações com os outros países da América Latina?

Emir Sader – Nada significativo.

IHU On-Line – A renúncia de Fidel tem relação com a nova estrutura da esquerda na América Latina, que está sendo chamada de Nova Esquerda?

Emir Sader – Não, não tem nenhuma relação. A história específica da esquerda na América Latina não tem ligação com a renúncia de Fidel. A renúncia de Fidel representa a continuidade do sistema político mais além do seu grande líder fundador, não mais do que isso. Fidel já instruiu aqueles que irão dirigir a Revolução Cubana.

IHU On-Line – De que forma a renúncia de Fidel pode influenciar a esquerda atual que está se formando na América Latina?

Emir Sader – Fidel está fora da presidência há um ano e meio, então não tem nada para influenciar agora. O que tinha para influenciar já influenciou. O que ele sonhou já está tendo continuidade em outros governos.

IHU On-Line – Então, Cuba continua sendo um modelo socialista para a América Latina?

Emir Sader – Uma referência, não um modelo. Estão sendo construídos diversos modelos novos influenciados por Cuba, por isso é uma referência.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a declaração de Bush de que a renúncia de Fidel deva ser um começo para a democracia cubana?

Emir Sader – O fim do governo Bush pode ser o começo para a democratização dos Estados Unidos. Eu não tenho previsão para as eleições, até porque não sou especialista, mas creio que todos os candidatos, de alguma maneira, rejeitam o governo Bush. Bush sairá do poder sozinho, como ele mesmo disse, só ele e seu cachorro, o que não é o caso do Fidel. Este sai com o apoio do povo cubano.

Não é o início do fim do socialismo. Artigo de Frei Betto
"Ilude-se quem imagina significar a renúncia de Fidel o começo do fim do socialismo em Cuba. Não há nenhum sintoma de que setores significativos da sociedade cubana aspirem o retorno ao capitalismo", escreve Frei Betto em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 20-02-2008.

Eis o artigo.

Fidel Castro, de 81 anos, renunciou às suas funções de presidente do Conselho de Estado de Cuba e comandante-chefe da Revolução. Entregue aos cuidados de sua saúde, prefere manter-se fora das atividades de governo e participar do debate político - que sempre o encantou – por meio de seus artigos na mídia. Permanece, porém, como membro do Birô Político do Partido Comunista de Cuba.

No próximo domingo, Raúl Castro, de 77 anos, será eleito, pelos novos deputados da Assembléia Nacional, para ocupar a função de primeiro mandatário de Cuba.

Esta é a segunda vez que Fidel renuncia ao poder. A primeira ocorreu em julho de 1959, sete meses após a vitória da Revolução. Eleito primeiro-ministro, entrou em choque com o presidente Manuel Urrutia, que considerou radical as leis revolucionárias, como a reforma agrária, promulgadas pelo conselho de ministros. Para evitar um golpe de Estado, o líder cubano preferiu renunciar. O povo saiu às ruas em seu apoio. Pressionado pelas manifestações, Urrutia não teve alternativa senão deixar o poder. A presidência foi ocupada por Osvaldo Dorticós e Fidel voltou à função de primeiro-ministro.

Estive em Cuba em janeiro deste ano, para participar do Encontro Internacional sobre o Equilíbrio do Mundo, à luz do 155.º aniversário de nascimento de José Martí, figura paradigmática do país. Retornei em meados de fevereiro para outro evento internacional, o Congresso Universidade 2008, do qual participaram vários reitores de universidades brasileiras.

Nas duas ocasiões encontrei-me com Raúl Castro e outros ministros cubanos. Reuni-me também com a direção da Federação Estudantil Universitária (FEU), estudantes da Universidade de Ciências Informáticas, professores de nível básico e médio e educadores populares.

Ilude-se quem imagina significar a renúncia de Fidel o começo do fim do socialismo em Cuba. Não há nenhum sintoma de que setores significativos da sociedade cubana aspirem o retorno ao capitalismo. Nem os bispos da Igreja Católica. Exceção a uns poucos que, em nome dos direitos humanos, não se importariam que o futuro de Cuba fosse equivalente ao presente de Honduras, Guatemala ou Nicarágua. Aliás, nenhum dos que se evadiram do país prosseguiu na defesa dos direitos humanos ao inserir-se no mundo encantado do consumismo...

Cuba não é avessa a mudanças. O próprio Raúl Castro desencadeou um processo interno de críticas à Revolução, por meio das organizações de massa e dos setores profissionais. São mais de 1 milhão de sugestões ora analisadas pelo governo. Os cubanos sabem que as dificuldades são enormes, pois vivem numa quádrupla ilha: geográfica, única nação socialista do Ocidente, órfã de sua parceria com a União Soviética e bloqueada há mais de 40 anos pelo governo dos EUA.

Malgrado tudo isso, o país mereceu elogios do papa João Paulo II por ocasião de sua visita, em 1998. No Índice de Desenvolvimento Humano de 2007 da ONU, o Brasil comemorou o fato de figurar em 70.º lugar. Os primeiros 70 países são considerados os melhores em qualidade de vida. Cuba, onde nada se paga pelo direito universal à saúde e educação de qualidades, figura em 51.º lugar. O país apresenta uma taxa de alfabetização de 99,8%, conta com 70.594 médicos para uma população de 11,2 milhões (1 médico para 160 habitantes), índice de mortalidade infantil de 5,3 por cada 1 mil nascidos vivos (nos EUA são 7 e, no Brasil, 27) e 800 mil diplomados em 67 universidades, nas quais ingressam, por ano, 606 mil estudantes.

Hoje, Cuba mantém médicos e professores atuando em mais de 100 países, incluindo o Brasil, e promove, em toda a América Latina, a Operação Milagros, para curar gratuitamente enfermidades dos olhos, e a campanha de alfabetização Yo si puedo (Sim, eu sou capaz), com resultados que convenceram o presidente Lula a adotar o método no Brasil.

Haverá, sim, mudanças em Cuba quando cessar o bloqueio dos EUA, forem libertados os cinco cubanos presos injustamente na Flórida por lutarem contra o terrorismo, e se a base naval de Guantánamo, ora utilizada como cárcere clandestino - símbolo mundial do desrespeito aos direitos humanos e civis - de supostos terroristas for devolvida.
Não se espere, contudo, que Cuba arranque das portas de Havana dois cartazes que envergonham a nós, latino-americanos, que vivemos em ilhas de opulência cercadas de miséria por todos os lados: "A cada ano, 80 mil crianças morrem vítimas de doenças evitáveis. Nenhuma delas é cubana”; "Esta noite 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma é cubana".

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