terça-feira, 9 de setembro de 2008

Os mortos anônimos

De Fausto Wolff, que morreu no último dia 5 de setembro. O texto foi escrito em agosto de 2007, pouco mais de um ano atrás. Enquanto Cabral discutia com Joban sobre a possibilidade de tropas federais policiarem o Rio permanentemente, recebi a última carta de leitor do dia. Massageou o meu ego (por ordem médica, não sai de casa nem recebe visitas), dizendo que minha coluna lhe dá a sensação de que alguém está fazendo alguma coisa. Pediu que escondesse sua identidade e endereço e que se isso fosse ferir os meus princípios, não publicasse nada. Como o leitor me mandou o número de seu telefone, não tive dificuldades em descobrir que ele existe mesmo.

Ele mora com a companheira num dos muitos acessos para a favela ###, cujo nome não publico, pois o leitor correria risco de vida. Há muitos furos de balas nas paredes de sua casa e, quando é dia de tiroteio, o casal dorme no chão do quarto dos fundos. Eles sabem de antemão o que vai acontecer porque, minutos antes, os bandidos se exibem com motos e carros roubados. Os garotos que são seguranças param na última barreira de trilhos verticais antes do asfalto. É quando chega o chefe da vez, sempre com grossos colares e pulseiras de ouro. A guerra começa assim que um olheiro informa ao chefe a rua pela qual os policiais estão subindo.

Os moradores têm medo dos bandidos, mas têm mais medo da polícia, que invade casas e barraco a qualquer hora do dia, dando tiros a esmo. Os bandidos também pouco se importam se matam uma pessoa inocente que nada tem a ver com esse ritual de confronto. Eis o que dizem os moradores: "A polícia não quer acabar com os bandidos porque também lucra com o tráfico".

Duas semanas atrás, numa sexta-feira, o caveirão teria aparecido na favela para receber o "seu" e não atrapalhar o baile funk. Deram alguns tiros para o ar, a fim de mostrar serviço, se exibir e amedrontar os moradores, e foram embora. Poucos minutos depois chegaram os ônibus lotados de passageiros de outros morros. Alguns mais graduados receberam drogas, a título promocional.

Segundo dizem, os ônibus são cedidos em troca de favores sexuais de algumas mulheres para os donos das frotas. A polícia, por sua vez, não inibe sua subida e assim colabora com a capitalização do tráfico, a compra de mais cocaína, maconha e armas, naturalmente. A coisa piora nas operações maiores da Força Nacional. Quando isso acontece, basta ver a expressão nos rostos dos adultos e, principalmente, das crianças, para entender o que é terror.

O resultado disso tudo - diz o leitor - é que o tráfico está onde sempre esteve. A presença da Força Nacional fez com que os bandidos acalmassem um pouco, mas continuam tendo, como sempre, total controle sobre o território. Nos acessos para o morro ficam, de dia, os soldados da Força Nacional e, à noite, os da Polícia Militar, os irmãos pobres.

Revistas ocorrem de vez em quando, mas há sempre um soldado para informar antecipadamente os bandidos, e as operações geralmente não têm sucesso. Sucesso têm as balas perdidas. A verdade é que existem tantos acessos não vigiados que quem quer levar armas ou drogas para dentro da favela jamais será incomodado.

Diz o meu leitor que, no penúltimo sábado, os policiais desconfiaram de um motoqueiro que podia ou não estar transportando muamba. Ele resolveu fazer o que todo mundo faz quando é chamado pela polícia: fugiu. O caveirão desceu com os soldados atirando a esmo. Quando o carro blindado teve de parar na barreira para deslocar o trilho que impede o trânsito, o motoqueiro, inocente ou culpado, conseguiu escapar. Quem não escapou foi uma dona-de-casa, dona Sandra, que abriu a porta da sua moradia (Rua Canitar, 585, em Inhaúma, e estou colocando o endereço com a permissão do leitor) no momento errado e recebeu um tiro de fuzil no peito.

Não, leitor, não saiu nenhuma nota na imprensa, o que reforça a sensação de que ninguém liga para quem mora no morro. Quando acontece um acidente aéreo, temos a oportunidade de ver o descaso para com o ser humano. Este descaso está presente nas favelas do Rio diariamente, onde se produzem cadáveres anônimos que nem entram nas estatísticas oficiais.

Especificamente, a polícia matou dona Sandra. Continuou a perseguir a moto, mas foi parada por uma parede de concreto atrás da qual estavam os bandidos, que revidaram com suas armas. O caveirão, com os vidros da frente estilhaçados, teve de dar marcha à ré, ocasião em que foi obrigado a levar dona Sandra, que sangrava muito, para o hospital. Ela morreu no mesmo dia.
O leitor termina sua carta dizendo que não tem nenhuma simpatia por bandidos, mas que vê o soldado da polícia e o soldado do tráfico como peças de um mesmo jogo de xadrez: os chefes de ambos os lados, egos inflados, lutando pelo poder.

Acabei de ler a carta do leitor ### e fiquei com medo de pensar no futuro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, e nós do lado de cá “seguros”, marginais ao local dos acontecidos, aos locais de terror, quase já não nos chocamos com noticias dessa amplitude. Acostumamos? Como acostumamos ver moradores de rua? Meninos de rua, extremas pobrezas? Desigualdades sociais? Ver pessoas inocentes sendo executadas já é normal, como é normal dizer que todo político é corrupto? É normal dizer que todo político é corrupto?
Disse bem vc Capilo, manter o tráfico vivo é importante p/ muita gente... E em contra partida fico pensando, o que poderia tirar dos civis o costume de acostumar... Falta muita coisa, pode se fazer muita coisa... Mas já é hora de nos indignarmos!

Vitor Castro disse...

Grande Wlado, só uma correção, não fui eu que disse - mas poderia ser - que "manter o tráfico vivo é importante". Foi um leitor do Fausto Wolff (FW).

Quando você falou de indignação, lembrei da coluna do próprio FW que saiu no Jornal do Brasil no dia de sua morte:

"Já escrevi em algum lugar que, enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição de seres humanos [...] Enquanto não se der a revolução da humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou não queremos tirar".

Acho que é isso, nos falta indignação contra essa tirania.