Osso duro de roer
Enviado por João Cuenca, O Globo, 27/09*
Se precisasse definir o Brasil numa frase, diria que é o país do perdão. O país da anistia ampla, geral e irrestrita. Anistia que, em lei aprovada pelo governo Figueiredo, não somente livrou a cara dos perseguidos pela ditadura entre 1964 e 1979, mas que também abriu as asas da liberdade aos perseguidores e criminosos "oficiais". Neste país de consciência livre, estupradores, torturadores e assassinos hoje jogam peteca na praia de Copacabana e curtem sua tranqüila aposentadoria. Depois de encher os bolsos, mandar bater e lotear estatais por duas décadas com sobrinhos com dificuldade de aprendizado, os milicos têm a vida que pediram a Opus Dei.
O Brasil, e isso costuma chocar mais nossos companheiros latino-americanos do que a nós mesmos, é o país mais atrasado do continente quando se fala em punir os responsáveis pelos abusos cometidos pelo regime militar. Para o bem da "paz e harmonia nacionais", o governo e a sociedade preguiçosa abaixam as orelhas e deixam pra lá. No país da anistia, tudo é perdoado com esquecimento. O que aconteceu deixa de ter acontecido, como se a roda da história se alimentasse de si mesma, num processo autofágico e irreversível.
O custo dessa amnésia tão simpática e conveniente é alto. Esse déficit moral faz com que o brasileiro aceite a idéia de tortura e violência policial como quem come um pastel de carne moída.
***
Escrevo esses parágrafos, como vocês devem imaginar, movido pela experiência de assistir à pré-estréia de "Tropa de elite", na última quinta-feira, no Odeon. Além da equipe do filme e usuais papagaios de pirata, a sessão contou com a presença, in loco, de Harvey Weinstein, criador da Miramax, vencedor de 45 oscars, produtor de blockbusters como "Pulp Fiction" e "Senhor dos Anéis" e, claro, co-produtor de "Tropa de elite". Weinstein, segundo perfil publicado pela New Yorker, é conhecido como "Harvey mãos de tesoura" pelo seu hábito de interferir na montagem dos filmes que produz. Imagino que não tenha sido o caso.
Poderia entrar no mérito exclusivo do filme e dizer que é impecável no que se propõe e que, apesar (e por causa) da pirataria, será um sucesso de bilheteria estrondoso. Ainda poderia escrever que "Tropa de elite" na maior parte do tempo parece um institucional nauseante do BOPE - no final, só faltou o "Aliste-se já!". Apesar disso, levanta algumas lebres, dá um par de tiros certeiros e deixa pelo menos uma cena na memória - aquela do policial Matias invadindo uma passeata pela paz na PUC.
Ao mesmo tempo, o filme é de um reacionarismo que talvez não tenha paralelos na história do cinema nacional. O texto é claro como pó de mármore: o tráfico de drogas é um câncer, a elite branca é hipócrita, a PM é corrupta, e o BOPE é incorruptível. Só o BOPE, através de seus imaculados princípios, nos salvará das trevas. E para isso, tem certas licenças nada poéticas - a tortura é a principal delas. Eles, que são puros, fazem o serviço sujo que nós, hipócritas de classe média, não encaramos. A lógica do discurso policial que "Tropa de elite" reproduz é cristalina.
O problema começa quando esse monstro disforme chamado opinião pública faz uma leitura do filme que corrobora esses métodos e valores. E aí, "Tropa de elite" pode perigosamente entrar para a história como o filme da geração "Cansei". O público torce pelo herói torturador e mata com ele, tortura com ele, em repetidas cenas à la Abu Ghraib - ou "Guantanamo no Rio de Janeiro", como disse meu amigo Daniel Alarcón. As celebridades enfiadas em black-tie aplaudem cada porrada, num frisson de adrenalina, e todos se convertem instantaneamente em perfumados torturadores de gabinete.
Depois, é claro, sabe-se que vem o perdão, nossa querida e mui conhecida anistia, para o torturador assassino justiceiro e para nós, apêndices conexos dessa violência, como diz a lei número 6.683. Porque, para o bem da "paz e harmonia nacionais", os fins justificarão os meios até o (nosso) fim. Enquanto isso, o pastel de carne moída segue descendo bem pela goela de todos. O uísquinho servido em coquetéis de estréia como a de "Tropa de elite" pode ajudar.
'Tropa de Elite é fascista?' Arnaldo Bloch
Pelos gritos de caveira na estréia e os urros sensuais da platéia, sei não...
Há algo de muito, muito hipócrita, no reino de euforia que cercou a estréia do filme mais celebrado da história do cinema brasileiro. A começar pelo discurso do diretor José Padilha, que perguntou à platéia que jorrava das fileiras do Odeon, quem já tinha visto o filme, "só por curiosidade". Quatro honrados gatos pingados levantaram as mãos, confessando-se piratas. O restante, em ato de alta covardia coletiva, emudeceu, e fez-se um silêncio sepulcral no palácio cinematográfico na Cinelândia.
Com a maior credulidade do mundo, sem qualquer signo de ironia, Padilha, herói de todo um Brasil de honestidade, retribuiu:
- Que bom! Uma platéia virgem!
Risadas, festa, alegria, quel esprit! Sentado no balcão lá atrás, bem malocado (o termo é proposital) dos holofotes, não resisti e gritei a plenos pulmões, ou o que resta deles, maltratados que foram no tempo remoto em que fumava (tabaco, é claro, imaginem!):
- Bando de mentirosos!
Claro que, afora aqueles dois otários (coitados, pensaram que iam ser maioria...), ninguém dos 800 vultos que hiperlotavam o cinema, apertando-se nas escadas e no chão, ia ser besta de assumir o ato de contravenção, ainda mais que estava lá o Secretário de Segurança, outro que emudeceu.
Se assumissem, como é que iam depois ter cara para gritar "caveira" em corinho (quase vomitei o pastel de cordeiro, delicioso, que comi antes) à medida que o capitão Nascimento, o nosso Rambo do Bope (magistralmente interpretado por Wagner Moura) ia se sagrando herói da noite, libertador de todos os medos e de todas as culpas, vingador natural de todos os corações desprotegidos, resultante transcendente de todo o bem e todo o mal ?
Não foi à toa que parte do público sentiu-se à vontade para gritar o lema da tropa corrupta e matadora. Afinal, ao optar pelo capitão Nascimento como narrador do filme, Padilha assumiu, de maneira sistemática, acrítica e quase pedagógica - e justificou para a média reacionária da sofrida sociedade espectadora - o discurso e o ponto de vista do que há de pior na corporação, o discurso da pseudo-razão enlouquecida dentro da loucura institucional, o discurso do "não há saída, tem mesmo é que matar." Tudo no filme que não é o discurso do Capitão Nascimento soa ridículo, risível, até porque os demais personagens são extratos estereotipados numa narrativa que se quer naturalista, mas crivada de cortes que de abrangentes nada têm.
Assim, no filme de Padilha, só a classe média-alta universitária de Zona Sul consome maconha e cocaína. Esta classe média-alta (a "galera"), para fazê-lo, necessariamente, e até com uma certa boa disposição de espírito, trava as melhores relações com o comando do tráfico, descarregando sua culpa burguesa em ongs-fantasia que nada mais são que organismos-títeres da alta bandidagem.
Curioso que, num filme tão up to date, tão distribuído por tantas majors (aliás, quando apareceu "Universal Pictures" na tela, teve gente quase esvaindo de gozo), as várias discussões sociológicas que se travam sobre a questão da violência policial (no âmbito da universidade onde estuda a bandidagem burguesa, no caso, a PUC) não há uma sílaba sequer referente a teses modernas, como a liberação do consumo de drogas, hoje altamente aceitas, ao menos como tema de debate, em qualquer foro, mas não na sala de aula retratada por Padilha, onde só há viciados alienados, com exceção do policial Matias, que conhece a realidade.
A preocupação obsessiva de Padilha é com o baseado que a galera queima, reforçando a tese surrada de que os maiores culpados pela violência do tráfico são os usuários (todos, naturalmente, burgueses). A cada menção desta abobalhada burguesia com "consciência social" (as aspas são do cineasta), gritinhos histéricos eram ouvidos em redutos da plateia, reforçados por palmas tímidas que logo se ocultavam ante a não-aderência (felizmente!) da massa presente. E ao final, quando o aspirante Matias se transformou num "policial de verdade" (leia-se: quando abandona seus princípios e aceita a tortura a crianças como método válido para seus nobres fins de vingança contra el capo) uma ovação aliviada consagrou "Tropa de elite" como porta-voz de nossas inquietações. E dá-lhe "caveira"!
Em artigo ao Globo, Wagner Moura diz que 'Tropa de elite' não é fascista
Publicada em 25/09/2007
Escrevo instigado pelo bom texto do Arnaldo Bloch sobre a sessão de estréia de "Tropa de elite". E respondo categórico à sua pergunta: Não, "Tropa de elite" não é fascista. Não é possível que alguém que tenha visto "Ônibus 174", um dos filmes mais humanistas dos últimos tempos, possa achar que o Zé Padilha (o diretor) tenha feito um filme fascista. Mas também fico preocupado quando vejo o capitão Nascimento ser tratado como herói. Fico pensando como reagiria ao filme uma platéia sueca. Não creio que pensariam naqueles policiais torturadores como heróis, assim como muita gente que vê o filme aqui também não pensa. Talvez os suecos não precisem de heróis. Talvez, aí sim uma tragédia, fascistas estejamos nos tornando nós, brasileiros, cidadãos carentes de uma política de segurança pública qualquer, que vemos naqueles policiais honestos, bem treinados, mas desrespeitadores dos direitos humanos mais elementares, a solução para o caos em que estamos metidos. Compartilhei contigo, Arnaldo, a vontade de vomitar o pastel de cordeiro no Odeon. Mas, na minha opinião, "Tropa de elite" contribui com o mais importante em épocas de crise: o debate (inimigo do fascismo). O filme traz um ponto de vista fundamental para se entender e discutir segurança pública, o olhar do policial. Eu, particularmente, discordo do capitão Nascimento em quase tudo, mas não posso deixar de ver a importância de entender seu pensamento como fundamental para o debate sobre violência no Brasil, já que é ele, assim como os traficantes e os moradores de favela, quem vive diretamente essa guerra particular, como nos ensinou, não por acaso, o capitão Rodrigo Pimentel, roteirista do "Tropa de elite", no seminal "Notícias de uma guerra particular", de João Moreira Salles.
Acho que o "Tropa", além dos méritos artísticos que tem, talvez já seja o filme pós-retomada que mais suscitou debates, a começar pela questão da pirataria, exaustivamente discutida. E não vejo, no Brasil de hoje, debate mais importante do que violência e segurança pública. Segurança pública não tem mais a ver só com a tragédia das vidas que se vão por conta da guerra polícia-tráfico-com-moradores-no-meio. Tem a ver, por exemplo, com aumento de verbas para a Previdência e para a Saúde. E, quando falo de violência urbana, quero lembrar que se para nós, moradores da Zona Sul, maioria na sessão do Odeon, a chapa já tá quente há muito tempo, imaginem para quem não pode sair de sua casa por ordem de um traficante, quem tem que passar a noite no chão com medo de bala perdida, quem é esculachado e desrespeitado pela polícia, quem não pode falar com o parente da comunidade vizinha por ordem do poder oficial, ocupante do vácuo deixado pelo poder instituído que, por sua vez, vem historicamente negligenciando essas pessoas. Isso é um fato: as maiores vítimas da violência urbana no Brasil são os moradores das favelas, e o filme mostra isso. Estou convicto: não há armas mais poderosas de combate à violência do que educação, cultura, lazer, esporte, bem-estar social e geração de emprego. É assim que o capitão Storani, oficial do Bope reformado que nos auxiliou no treinamento para o filme, tem tentado combater a violência em sua gestão como secretário de Segurança num município da Baixada. E, mais uma vez, recorro ao capitão Pimentel, na maravilhosa entrevista a João Moreira: "Enquanto o único braço do poder público que sobe a favela for a polícia, não haverá solução."
Pimentel foi também o primeiro policial que eu vi defender a legalização do consumo de drogas, que o Arnaldo reclamou não constar nos debates do núcleo PUC do filme, onde o Zé Padilha estudou. E acho que já passou da hora mesmo de discutir esse assunto com honestidade. Capitão Nascimento põe sua vida em risco todos os dias para lutar uma guerra inútil contra o tráfico e responsabiliza os consumidores pela sua tragédia pessoal. Essa tem sido inclusive uma bandeira defendida por órgãos oficiais de combate às drogas. É lógico que há uma responsabilidade individual nisso, e eu conheço muita gente que deixou de fumar maconha para não alimentar o tráfico. Mas não creio que essa campanha seja mais eficaz do que a legalização do consumo. O uso de drogas existe desde que o mundo é mundo e não vai ser a repressão que vai acabar com o consumo. Mas a legalização pode acabar com o tráfico. Eu vejo o consumidor como o elo mais fraco da cadeia. Combatê-lo é contraproducente. O abuso e o vício devem ser tratados como problemas de saúde pública. O tráfico é que é questão de segurança pública. É o tráfico que arrasta os jovens de periferia para a morte e tenho certeza de que morre muito mais gente na guerra do tráfico do que de overdose. De que forma fazer, eu não sei, mas acho que já passou mesmo da hora de discutir o que me parece óbvio e acredito que o filme contribui com isso. Só mais um dado: sabe de quem partiu a idéia de legalizar as drogas na Holanda? Da polícia, parceiro.
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