segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Manderlay, etnocentrismos, racismos e Caetano...

Acabei de ver 'Manderlay', filme de Lars von Trier e dica já antiga da minha ex-mulher. Realmente é um filmaço. Eu tinha ficado com uma certa repulsa e agonia com relação ao universo dramático deste diretor dinamarquês depois de ver 'Anticristo'. Agora até confesso que mudei em certa medida minha opinião.

Não vou contar a história dos filmes, mas o enredo do Anticristo, que usa o símbolo feminino, aquele círculo com uma cruz embaixo no lugar do segundo t na capa do filme em seu nome original em inglês, Antichrist, justifica em certa medida toda a bizarrice e violência da película. Querem saber por quê? Vejam o filme, ora essa, e choquem-se também como eu, Cannes e todo mundo que viu esse filme sinistro...

Bem, o importante é que num primeiro momento eu achei exagerada e desnecessária as cenas de automutilação e outras bizarrices, mas, pensando bem, faz sentido com o enredo e o rumo da história, apesar de serem talvez excessivamente violentas, explícitas e chocantes. De mal gosto, eu diria, embora, pensando agora de cabeça fresca e sem sentir dor alheia - variante contorcida e traumatizante da vergonha alheia - façam sentido.

Em 'Manderlay', novamente temos um mesmo ambiente experimental, com o cenário inusitado e teatral, que impõe a utilização de vários elementos de mímica, presente também em Dogville, filme do qual, aliás, é uma continuação, sendo a segunda parte de uma trilogia anunciada e ainda não concluída pelo autor. Novamente um tom de fábula criado pela conjunção de um narrador em off, o caráter surreal e experimental do cenário, um clima de sombras e contrastes, os cortes abruptos nos planos sequenciais e diálogos, além da própria organização do roteiro em capítulos com títulos que sugerem uma argumentação filosófica, nos colocam uma série de problemas reais e contemporâneos.

Aliás, eu diria que uma das principais virtudes dessa trilogia é essa sua opção experimental pela fábula, por não abrir mão de uma narrativa surreal e ficcional para expor problemas atuais. No final, causa incômodo um certo nonsense e absurdo da situação e de uma série de discursos e argumentos quye encontramos cotidianamente em jornais, nos locais de trabalho, nas campanhas políticas, bares e, o melhor de tudo, em nossos próprios discursos. É um "nosso lugar" de branco e ocidental, portador de um senso comum sustentando diversas posições que muitas vezes já não pomos em questão por assumirem um caráter 'indiscutível' cotidianamente, acerca de temas como liberdade, democracia, justiça, dentre outros que o autor fará surgir como problemas abertos, não resolvidos, e os inflama, jogando-os em nossa direção como coquetéis molotov. Nessa dança surreal das cadeiras, ele nos toma todos os assentos possíveis e nos manda embora da trama como quem nos passa uma rasteira bem dada. Assentos, por sinal, já de antemão inexistentes em sua obra e escolha cenográfica.


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Lembrei do Caetano Veloso e do eterno debate sobre o mito da democracia racial brasileira. Caetano, neste domingo, fez uma provocação a Liv Sovik, pesquisadora da ECO/UFRJ que aponta as diversas perversidades existentes na noção disseminada de que vivemos na sociedade brasileira um racismo mais leve ou menos violento, e que o componente cor ou raça não influi tanto no cotidiano e nas histórias pessoais dos brasileiros.

Não sou tucano, logo não fico em cima do muro: não concordo com essa tese e sou, inclusive, defensor das cotas raciais em universidades e onde mais for preciso uma intervenção do Estado na sociedade na forma de políticas públicas em prol de uma igualdade social, racial, etc. Caetano assume outra posição, e questiona o que as diversas cotas raciais existentes nos Estados Unidos produziram de mudança nas mentalidades e mesmo no status quo da sociedade americana.

Não li Gilberto Freyre, não li nenhum outro grande pensador que defenda o mito da democracia racial, o que torna em certa medida capenga qualquer explanação que eu arrisque formular a seu respeito. No entanto, o já mais nem tão doce, muito menos bárbaro, mas sempre provocador em sua verve tropicalista, o baiano conseguiu me provocar com uma colocação sua, ou melhor, uma citação do Antônio Cícero: a de que o mito da democracia racial deveria ser interpretado como uma espécie de mito propulsor.

O que me traz de volta à Manderlay - e chega a ser uma ironia eu ver justamente esse filme hoje depois de ler e me encucar com essa argumentação do Caetano.

A forma como o filme de desenvolve tem muito a ver com uma crença numa democracia racial possível de ser produzida com um decreto ou com uma simples revogação e abolição da escravatura. Apesar desta proposição ter certas nuances mais calcadas numa convivência entre as raças marcada pela mestiçagem, no caso brasileiro, a questão colocada pelo filme é, por um lado, as dificuldades de superação das marcas da violência social existentes em anos de práticas escravagistas sustentadas por teorias eugênicas que apontam para um projeto civilizador branco e eurocêntrico. Por outro, indica como a ideia de uma superação imediata e forçada das marcas e rancores produzidos nesse período são a continuação desse projeto civilizador em sua face cínica e igualmente violenta. Apontam para uma abolição dos brancos, de uma superação das mágoas, da culpa e de um apagamento perverso das condições que justamente impedem a vivência de uma democracia racial. Negar essas perversidades continua significando atropelar toda uma questão histórica formadora do Brasil e do mundo tal como o vivemos hoje em dia, além da perpetuação das desigualdades nas relações de força e da dominação exercida por grupos raciais específicos sobre outros.

O mundo globalizou-se e homogeneizou-se toscamente através do estupro, da pilhagem, da dominação colonial e escravização dos ditos povos bárbaros ou inferiores. E isso não se muda ou supera de uma hora para outra. Reconhecer essa dívida histórica não é nenhuma legitimação do ressentimento, pelo contrário.


[Engraçado, eu ia falar agora que esse ressentimento se produz e reverbera através dos movimentos racistas ao contrário, como muitas vezes ouvimos falar... Não existe racismo ao contrário, existe racismo e pronto, seja para onde for apontada sua irracionalidade raivosa.]

É lógico que temos que ter o mito da democracia racial como um mito propulsor - mas como horizonte ético, como utopia. Porque do contrário, apontando-o como presente e original, negamos as vicissitudes históricas e afirmamos ainda nosso racismo perverso por linhas tortas e falsas dizendo que um dia chegará a vez do negro - mas que primeiro ele deve escolarizar-se e ascender socialmente tal como uma etnia bárbara que passa por um processo civilizatório, globalizado e modernoso...

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Por fim, possíveis leitores dessa mídia teimosa, assistam 'Manderlay'... pode deixar que eu não explanei o final, não: ele inelutavelmente se imporá como um soco no estômago... aliás, bem como tudo o que eu já vi na obra desse dinamarquês maluco chamado Lars von Trier...

2 comentários:

Amana disse...

Gostei dos comentários, me fizeram pensar em coisas que não tinha pensado ainda sobre o filme.

Quando vi, fiquei mais na reflexão sobre a frase "fazer o bem sem olhar a quem", que parece ser o mote do início do filme. Nesse sentido, acho que todo psicólogo, todo assistente social, todo cristão bem intencionado deveria assistí-lo. Porque ele é tão contundente, o soco no estômago é tão forte, que não há como não repensar nossas práticas ordinárias a partir disso.

Outra coisa que paro para pensar - relacionada com isso - é sobre as intenções da ação. O que se pretende quando se faz alguma coisa? Que mudanças precisas, a partir de que ponto de vista? O projeto da democracia liberal é construído em cima dessa noção de eficácia, eficiência, governabilidade. Nesse sentido, acho que aceitar a ideia de Hannah Arendt, de que a ação é imprevisível, com efeitos que saem do controle daquele que a inicia, por se dar entre os homens, é muito mais interessante para se pensar a democracia.

E a parte final do filme, dos créditos, com todas aquelas imagens de lutas raciais, ódio e preconceito nos EUA, ao som de David Bowie, nos embola no problema da ação e nos joga novamente no meio da fogueira das tensões raciais.

Não há como se "desvencilhar" do problema com um decreto abolicionista, ou mesmo com a dedicação de uma vida bem intencionada. Temos que nos haver com isso...

beijos!

Rodrigo Bodão disse...

pois é... eu também passei por essas questões que vc aponta, mas acabei dando mais ênfase a esse aspecto das lutas e conflitos raciais até por lembrar do texto do Caetano. Durante o filme eu pensei que seria uma bom instrumento para debate entre profissionais que trabalham os temas desenvolvidos. Uma oficina para oficineiros... rsrs

Fica muito claro os problemas que são causados por essa postura civilizatória que em tese negamos, mas nos vestimos direitinho... A democracia como uma imposição por mais racionais que sejam os argumentos acaba esbarrando em limites bem complicados, expondo contradições e dilemas que são comumente atropelados pela mesma racionalidade liberal e democrática que os cria e produz. Daí, talvez, a ânsia contemporânea pelo controle e governabilidade dos sujeitos, das situações, das ideias... as ciências do ajustamento...

pois é... temos mesmo que nos haver com isso...