tem uma propaganda de uma marca de comida para gatos (whiskas) que sempre que vejo fico imaginando que não faz sentido. daí hoje eu vi de novo e consegui entender porque não faz. na propaganda o gato recusa um prato de um chef francês (ou coisa que o valha) e vai na direção do prato de whiskas. ora, é óbvio que o gato iria para o prato de qualquer ração para gatos se a outra opção fosse fígado de ganso, com queijo de cabra e molho de maracujá (todo meu conceito de comida francesa aqui exposto). guardadas as devidas proporções, porque os homens pensam e têm curiosidade, seria o mesmo que colocar um sertanejo entre um prato de feijão e um prato com o fígado de ganso, queijo de cabra e etc. o sertanejo iria no feijão, claro - e aqui me permito generalizações. veja bem, não é uma regra que diz respeito a pratos e sim a costumes. porque o paladar, como tudo aquilo que nos é permitido optar e fazer voluntariamente, está enraizado em hábitos.
hábitos são coisas que se baseiam em muitos fatores. mas hábitos são antes de tudo culturais e sociais. quando nascemos, muitos dos hábitos que vamos adquirir já estão determinados pela vida que levam nossos pais e pelo local onde nascemos. e, certamente, uma das coisas mais difíceis de se apreender (não apenas aprender) na vida é justamente que esses costumes são sociais e culturais. porque o fato de já nascermos com eles (neles) os naturaliza de uma forma arrebatadora.
mudando de assunto, mas seguindo no mesmo, esta semana li em um blog um texto em que a autora explicava o seu conceito de idiota. o conceito de idiota infelizmente não é o que aqui me interessa. de todos modos os argumentos expostos por ela me estimularam a pensar o oposto. a pensar o que seria um conceito de inteligente. e não estou falando em saber, conhecimento. não me refiro a pessoas cultas.
eu dividiria os idiotas e os inteligentes em duas categorias maiores: os idiotas são aqueles que não merecem que eu dispense atenção; os inteligentes são os que merecem. de novo, o idiota pode ser doutor em harvard e o inteligente pode ser o sertanejo do primeiro parágrafo. saber, classe social e corte de cabelo não estão aqui incluídos.
retomando o raciocínio e motivada pelo post já citado, eu diria que uma pessoa inteligente é aquela que consegue estabelecer uma relação crítica com os hábitos. é a pessoa que é capaz de perceber que entre o fígado de ganso e o prato de feijão ela vai no feijão porque assim foi educada (no sentido pedagógico mesmo) e não porque o feijão é "melhor" - as comidas são aqui utilizadas como metáforas de duas coisas opostas (como para o gato), pois é perfeitamente sensato que um ser humano do século XXI coma ganso e feijão.
o inteligente é aquele que sabe que a vida é um processo e por mais redundante que pareça, é viva. não pode falecer presa a um conjunto de convenções e saberes que se mostram rígidos como uma rocha e naturais como a chuva. o inteligente olha pra si e vê hábitos, não regras. olha pro mundo e vê a oportunidade de adquirir novos hábitos. para o inteligente não é preciso "concordar" com o que acontece ao redor. se o que acontece não está em sintonia com seus valores, ele repensa seus valores, para depois avaliar o acontecido.
e aí, eu resgato uma máxima de um cara que nem admiro, mas que mereceria minha atenção: paulo francis. dizia o velho que pessoas inteligentes são contraditórias. e isso faz todo sentido pra mim. porque a posição do inteligente não é um todo monolítico. mas é algo a ser repensado e reconstruído sempre. é por isso que o inteligente tende a liberdade, a meu ver. porque a primeira prisão que experimentamos é essa, a dos costumes, a da pedagogia cotidiana.
daí que hoje eu fui ver o monólogo da fernanda montenegro baseado nas cartas de simone de beauvoir para sartre. num dos trechos ela diz que os homens têm medo da liberdade porque ela é assustadora. e assusta justamente porque precisamos experimentar esse exercício de desnaturalizar tudo, desde o paladar até as maiores certezas dessa vida - esse exercício na maioria das vezes pode não ser bem visto pelos que nos rodeiam. é por isso que simone diz que ser livre exige "coragem moral".
cheguei até aqui para lhes demonstrar que o gato da propaganda não era corajoso. portanto, entre um fígado de ganso e um pote de whiskas, apenas pense antes de ir no whiskas.
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a peça é maravilhosa. recomendo demais. um texto primoroso - ok, é simone de beauvoir. vai de camus a sartre numa leveza deliciosa. é libertário. é real.
justamente nesse trecho que citei, em que fala de liberdade, fernanda emenda na crítica que simone faz ao casamento. ela diz que exatamente porque sua ideia de liberdade é essa que o casamento é imoral. porque não há como nem se admitir que algo possa ser para a vida toda. veja bem, a ideia de casamento católica, não a ideia de amar alguém e "desejar" que dure para sempre.
"como vou dizer que o eu de amanhã vai querer o que o eu de hoje quer, se eu nem conheço quem serei eu amanhã?" (ou algo assim). enfim, um dos muitos trechos brilhantes.
tem três pontos altos, eu diria: a descrição do processo que foi para ela romper com sua criação católico-conservadora (alguém aqui se identificou?); toda a descrição da relação dela com sartre e as orgias e as mulheres e homens que tinham pelo meio (amor livre não é pra qualquer um) e finalmente, a relação dela com o universo masculino e toda a crítica que ela faz ao lugar que é dado à mulher no mundo (que é sua face mais conhecida, por conta do feminismo). sobre este último item eu queria muito escrever. mas fica pra outro dia. requer alguma reflexão.
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no teatro o texto de uma francesa. uma peça repleta de jacques, pierres, jours e eurs. no jantar que veio depois uma mesa ao lado com 2 francesas e suas amigas brasileiras.
tudo no mundo lembrando que o oceano atlântico está aí para ser desbravado. e que do outro lado tem abraço quente.
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apenas uma menção à mercedes sosa. "sólo le pido a dios que el dolor no me sea indiferente".
um bom descanso.
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3 comentários:
Enxergar que existe um mundo inteiro de possibilidades é o grande barato da vida. E olha que nem sempre é necessário experimentar a possibilidade para se dar conta de que ela pode ser libertadora, se não para você, para alguém.
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Há algum tempo o tema do Saia Justa foi Simone de Beauvoir. Foi muito bom. Quero ver a peça.
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Foi sempre assim e eu nunca reparei ou essa coisa de escrever só com minusculas é coisa nova?
faber, é só olhar os posts antigos. eu odeio letras maiúsculas. acho chato.
quando as uso é porque escrevi no word e ele as impões.
quentíssimo, eu diria.
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