Lembro-me com muita clareza, e certamente meus companheiros de blog também lembram, em que contexto surgiu este blog. Era um momento sangrento em que o governo do estado começava a seguir à risca a cartilha da “higienização”, da “limpeza” social. Tratava-se do período pré-pan, quando iniciaram as megaoperações sob a batuta do Sr. Beltrame. Em dois meses, foram dezenas de mortes provocadas por confrontos armados entre polícia e bandidos (ou seria entre bandidos e bandidos, ou polícia e polícia... sei lá tanto faz), além dos caveirões, etc... Foi nesse contexto que decidimos algumas “ações” (a Clê poderia nos narrar a colagem de cartazes pelo centro) como forma de protesto ao que ocorria, inclusive a criação deste espaço virtual.
Pois é... gostaria então de me reportar ao tema original que motivou este blog:
“Eu já passei por quase tudo nessa vida...” E dentre esse quase tudo, inclui, além de soldado, vendedor de picolé, Office boy, catequista, roqueiro, inclui também um período em que trabalhei como “menor aprendiz” de uma instituição chamada “Centro Salesiano do Menor” (o nome lembra até uma casa de recuperação para delinqüentes). Após um breve período aprendendo a como se comportar passivamente numa empresa, a ser um funcionário disciplinado e obediente, fui encaminhado para trabalhar como estagiário numa agência da Caixa Econômica. Lá eu fazia um monte de coisas que eu gostava, que me fazia se sentir importante: eu atendia o público, dando informações; arquivava documentos, abria conta, dava entrada no Fundo de Garantia dos velhinhos endinheirados que se aposentavam pela Petrobrás (era muita grana que aquela gente recebia!), enfim, eu era a mão de obra barata para os serviços burocráticos.
Em se tratando de uma agência bancária, o risco de assalto era iminente, daí, a necessidade de vigilantes armados com seus “três oitões” pronto para atirar... Eu era amigo desses caras, afinal éramos da “casta inferior” e nos identificávamos, ficávamos boa parte do tempo batendo papo próximo ao balcão de atendimento. Não sabia que eu, do alto dos meus 17 anos, vivenciaria o primeiro assalto a agência da av. Chile. E foi justamente num desses dias de bate papo com meu amigo Arruda, o vigilante feio e mal encarado, com coração de bala de açúcar. São poucas as imagens registradas na parede da memória, daqueles intermináveis 3 minutos: De forma repentina, Arruda muda de fisionomia (se é que era possível) e movimenta a mão para seu calibre 38: “Não se engraça, não!!!” Pá, pá, puum! ... arma há 50cm da minha orelha disparando na direção do Arruda que teve a minha companhia no automático e natural impulso humano de se jogar no chão diante de tal infortúnio. Talvez o nome dele não fosse dado à toa: nenhum tiro acertou Arruda. Homens pulando o balcão... homens saindo com malote... silêncio absoluto. Fim do assalto.
Não são esses flashes que mais me fazem lembrar do episódio, são os momentos posteriores:
- E aí? Está tudo bem? Como você está se sentindo? – perguntas estranhas fazia aquele homem, que depois fiquei sabendo era o psicólogo do banco “especialista nessas situações”.
E enfim, as falas que não me saem da cabeça, principalmente quando vem à tona a nossa segurança pública: “Eu acho um absurdo, esses vigilantes serem orientados a reagirem a assaltos!!! Deixa levar essa merda! Tá no seguro! Isso só faz colocar a nossa vida em risco!”. Era a gerente referindo-se a tentativa de reação de Arruda, já que segundo ela, o assaltante só teria atirado por ter percebido o movimento do vigiliante-aspirante-a-herói. E é exatamente aí que queria chegar: não só ela, como vários funcionários condenaram tanto a atitude de Arruda, como a orientação recebida por eles (e é esse que deve ser o foco da condenação) de sempre reagir nessas situações. Ou seja, não precisa ser especialista para saber que num espaço com grande movimentação, como era o caso daquela agência, é no mínimo uma grande irresponsabilidade tentar reagir a um assalto, já que tal atitude transforma imediatamente o local em uma arena do inferno... tiro pra tudo quantu é ladu. Afinal de contas, do bandido espera-se que ele seja... bandido! Nada mais... Já do vigilante, espera-se minimamente que ele seja um agente que tentará garantir a integridade física das pessoas que lá se encontram (talvez seja ingênuo da minha parte, já que na verdade eles lá se encontram para proteger o patrimônio do banqueiro). Mas, de qualquer forma, era essa a aspiração, era isso o que esperavam os gerentes, funcionários, clientes, velhinhos aposentados da Petrobras... em relação aos vigilantes. “Absurdo tentar reagir e nos colocar em risco! Que se foda o dinheiro, o importante é minha vida!”
Pois é... não deveria ser este o pensamento dominante quando o assunto é segurança pública nas favelas? Nesses espaços tão densamente povoados, cujas vidas ficam em 34º plano nas ações de intervenção policial?
Ah... mas a o buraco é mais em Marx. Como já dizia o xerife Beltrame, “um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro na Coréia, no Alemão, é outra”.
Quero ver “remédio amargo”, “mal necessário”, “baixa de guerra” no quintal dos velhinhos endinheirados da Petrobrás.
Aí não tem jeito... meu ódio e indignação exalam pelos poros e pelos olhos ensandecidos quando a pauta do telejornal é: investigação para saber de onde partiu o tiro. Da polícia ou do traficante?
Não interessa de onde partiu o tiro! O Estado deve ser responsabilizado por privilegiar o confronto armado nas favelas. Por provocarem os bandidos, assim como fez Arruda, a acionarem seus brinquedinhos devastadores...
Enquanto isso, menos uma mãe na favela Kelson. Ou melhor, menos uma “fabricante de bandidos”, não é Sergio Cabral?
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2 comentários:
fico triste em pensar nessas mortes que parecem não ter fim, revoltado por concordar contigo e feliz por vê-lo de volta nessas bandas...
vou tentar sair de mim e vociferar contra esses absurdos que se sucedem...
hoje ainda não, mas logo, logo, garanto, meu camarada
tenho respostas. comentários. impressões. sobre o texto. sobre o que aconteceu no kelson. sobre outras coisas. coloco aqui quando conseguir organizar.
mas era preciso dizer que é bom você aparecer por aqui.
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