A insônia deu um descanso, mas voltou por esses dias. O cházinho já não adianta. Daí que ontem, enquanto não dormia, pensava. Nisso, lembrei-me que uma amiga certa vez escreveu uma bela paráfrase de um belo poema do Nicolas Behr. Inspirada nela, escrevi também. Mas não a tenho mais, ela foi escrita em cópia única, como muitas coisas que escrevo. Então comecei a pensar noutra paráfrase, já que conheço bem o poema. Terminei-a agora de manhã.
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Eu nasci para ser uma mulher boa
eu nasci para ser uma mulher boa
- faltaram peitos e bunda -
eu nasci para ser uma boa mulher
- sem saber o que venha a ser boa -
eu nasci pra ser filha de muitos pais, para minha sorte
eu nasci para ser uma boa filha, mas meus pais insistem que falta muito para isso: hei de ser mais vaidosa, arrumar um emprego e ficar mais em casa - mentira
eu nasci para ser a melhor das irmãs, pode perguntar pra ‘elas’
eu nasci para ter muitos irmãos que não são de sangue – algo parecido com os muitos pais
eu nasci para tecer teorias, várias, sobre tudo
eu nasci para gostar de falar sobre comunicação, política e futebol, ainda que, na verdade, não entenda de nenhum dos três assuntos
eu nasci para ser palmeirense e chorar na final do mundial de mil novecentos e noventa e nove, sozinha de joelho, ao ver o gol do manchester
eu nasci para chorar, apenas quando não dá pra disfarçar
eu nasci para gostar de raul seixas e acreditar na sociedade alternativa - 'faça o que tu queres pois é tudo da lei'
eu nasci gostar de ler bula de remédio e manual de instruções
eu nasci para gostar de drummond e ser surpreendida pelo leminski
eu nasci para não gostar de usar letras maiúsculas
eu nasci para dizer que se matar é covardia, assim como ser indiferente - mas se não tiver outro jeito, se mata, eu sentirei saudades
eu nasci para gostar de salgado e de suco de acerola com limão
eu nasci pra odiar cafuné, mas implorar por um carinho nas orelhas
eu nasci para gostar de cheirar cabelos e de recordar o perfume de quem eu gosto
eu nasci para não ter medo de dizer – e não cansar de me arrepender e depois desarrepender disso
eu nasci para ser dramática e piegas, fazer o que?
eu nasci para ser forte – e levar isso à risca
eu nasci para não saber dançar e fazê-lo assim mesmo
eu nasci para escutar a mesma música várias vezes, sem enjoar - e irritar os outros com isso
eu nasci pra gostar de música alta, bem alta
eu nasci para gostar de dormir com um braço embaixo do travesseiro e os pés cobertos
eu nasci para gostar de música, poemas, cerveja e bolinhos de bacalhau – se possível, tudo junto
eu nasci para cuidar de quem está ao meu redor
eu nasci para fazer jogo duro quando querem cuidar de mim
eu nasci para desconfiar
eu nasci para confiar também, claro – sempre desconfiando
eu nasci para ser contraditória
– mal das pessoas inteligentes (frase do paulo francis) -
eu nasci para ser parcial, impacinete, grosseira, longe da perfeição e não me orgulhar disso
eu nasci para que eduardo galeano tivesse mais uma jovem leitora sonhadora
eu nasci para perseguir a felicidade, incansavelmente
eu nasci para ser pouco didática – olha a impaciência –, mas generosa, o que as vezes funciona e me faz parecer legal
eu nasci para ser fria
– mentira, é uma máscara -
eu nasci para ser crítica e irônica
eu nasci para não irem com minha cara e para desconstruir isso depois
eu nasci para sentir saudades: dos amigos, das cidades, dos momentos, das gírias e das manias
eu nasci para jogar mal futebol, mas matar uma bola no peito e fazer o gol sem deixar que ela caísse, num jogo histórico em 2003 na cidade de la paz
eu nasci para ser uma baiana sem sotaque e do mundo
eu nasci para amar meus amigos e beijar, abraçar, andar de mãos dadas e dormir junto com eles
eu nasci para morrer, como todo mundo e viver como poucos
eu nasci para ter um menisco fudido e me machucar sempre que jogar futebol
eu nasci para ser míope e ao frazir a testa enxergar além do óbvio
eu nasci para tentar respeitar a todos
eu nasci para acreditar piamente que outro mundo é possível
eu nasci para reparar nos sapatos das pessoas
eu nasci para ler a primeira linha do livro do cara sentado ao lado no metrô
eu nasci para não entender saramago, sacar pouco de filosofia e ter pé atrás com cinema oriental
eu nasci para começar essa paráfrase uma e vinte e dois da madrugada do dia oito de maio de dois mil e oito, deitada na minha cama e admirando meu teto, como tantas vezes nas últimas noites
eu nasci para ter insônia
eu nasci para te impressionar, para te fazer rir e te fazer companhia quando a festa acabar e o povo partir
eu nasci para lançar uma dúvida: se foi o homem que criou deus, quem criou o homem?
eu nasci para acreditar que tudo passa e se você acha que não, eu te convenço disso
eu nasci para entender de nada e de tudo um pouco, como boa jornalista
eu nasci para reconhecer minhas limitações – esse poema não é meu, e a idéia de parafraseá-lo também não
eu nasci para ter histórias fantásticas para tudo – é só saber contar
eu nasci para admirar o jeito que o bodão escreve e tomar umas cervejas com ele
eu nasci para trabalhar com capilo, ser amiga de algumas pessoas e aguentar o daniel ( lembrem-se dani e capilo: quem entra num poema não morre nunca, dizia mário quintana)
eu nasci para sentir dor e desprezá-la
eu nasci para estar lá quando o humor acabar
eu nasci para passar por aqui e seguir para não sei onde, certa que não volto pra te contar
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3 comentários:
eu nasci para que este poema nunca tenha fim, para que você o continue e sinta a leveza e felicidade que senti ao chegar até aqui
a amiga que teve a idéia da paráfrase primeiro deveria, no mínimo, entrar no poema e virar imortal, mas tudo bem...
vai ser interessante comparar essa com a primeira versão da sua paráfrase. já vi que muita coisa mudou
beijos e saudades
a amiga não pode virar imortal, porque já é, minha cara iolanda.
sobre a comparação: não a reserve só para ti, eu fiquei curiosa
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