sexta-feira, 4 de abril de 2008

É tudo verdade?



Ontem, enfim, consegui ver um filme do Festival É Tudo Verdade. Quando cheguei em casa, procurei a programação disposta a assistir qualquer coisa. Eis que descobri que haveria a exibição de um tal Coração Vagabundo no Unibanco Artplex, que fica perto do hospício onde moro. Lá fui eu, sem saber como era o filme e sem saber se conseguiria entrar – me haviam dito que as sessões do festival estavam bem disputadas. Chegando no Artplex, dou de cara com aquele clássico cenário de cinema-em-época-de-festival-no-rio-de-janeiro, qual seja: reunião de pessoas cults, que usam óculos de aro grosso e coloridos, xadrez até na calcinha e sapatos estranhos – lembram os da minha vó, na maioria das vezes. No mundinho do cinema, todo mundo conhece todo mundo e todo mundo espera o ano todo pelos festivais. Eis a vanguarda.

Olha eu caindo na tentação de mudar o assunto. Esse texto deveria ser sobre o filme. Retomemos o fio da meada.

Coração Vagabundo é um documentário, de uma hora apenas, que acompanha Caetano Veloso nos shows da turnê do disco Foreign Sounds. Os shows aconteceram em Nova Iorque e em Osaka e Quioto (Japão).

O filme segue uma linha que tem sido recorrente nos documentários brasileiros: tratar de personalidades nacionais. Mas, me parece, que o faz de uma maneira mais original quando comparado com outros filmes. Primeiro, porque Coração Vagabundo é motivado pela turnê, o que lhe dá um ritmo diferenciado. O diretor, Fernando Andrade, teve a oportunidade de filmar seu personagem em 3 países diferentes, ao longo de 18 meses. Isso, por si só, abre algumas possibilidades que não existem em um documentário gravado em dois meses entre a casa e o restaurante favorito do protagonista, por exemplo. Segundo, porque o filme não se preocupa em colocar Caetano Veloso como uma grande personalidade musical, como um mito. Acredito que isso seja reflexo da própria atitude de Caetano, que por mais de uma vez afirma que não quer ser visto como alguém distante das pessoas, como algo a ser seguido e admirado. Ele diz que repudia o “obscurantismo” e ilustra essa idéia ao comentar a decepção que, por vezes, aflora em quem o conhece pessoalmente, depois de ver sua interpretação de Curucucu Paloma – que é perfeita e emocionante – no filme “Fale com ela” de Almodóvar. Em Coração Vagabundo, inclusive, é o próprio Almodóvar que comenta a atuação de Caetano.
A saga de Caetano é fazer, e não agradar ou marcar época. Isso ele sabia desde a Tropicália, quando introduziu a guitarra elétrica nos festivais, num tempo onde as canções de protesto eram hegemônicas – até Roberto Carlos abria mão da guitarra para cantar seu iê-iê nos festivais, substituindo-a por um violão. Caetano é um grande personagem e não precisa do rótulo de grande músico ou mito para sê-lo.

O que vemos no filme é a intimidade desse personagem curioso e determinado. Não uma intimidade banal e ridícula como podemos apreciar (sic) nos programas de domingo da TV aberta, mas a ansiedade e a visão de mundo de um cantor que fez de sua carreira um constante jogo de apostas e que não tem vegonha de trocar de roupa na frente da câmera. Monotonia e nostalgia não combinam com Caetano, o homem “pop”, como ele mesmo afirma, que não tem medo de julgamento - se sobreviveu à década de 60 cantando “tomo uma coca-cola, ela pensa em casamento”, sobrevive à tudo – , mas que fica surpreso e desconcertado ao descobrir que um monge budista em Quioto adora a canção Coração Vagabundo.

Com um bom personagem, é claro que a força do filme está nas falas de Caetano. No entanto, creio que aí há algum mérito do diretor. Fernando opta por uma câmera que dá bastante liberdade ao cantor, deixa-o discorrer à vontade enquanto caminha pelas ruas de Osaka ou Nova Iorque. Óbvio que há algum ônus por conta dessa opção. A câmera tremida e a falta de foco são coisas que não me incomodam, pelo contrário, tendem a me agradar. Acho que isso ou a sombra do microfone no casaco de Caetano ou ainda a falta de luz em uma caminhada a noite por Quioto, dão ao filme um pouco do vigor, da euforia que existem na juventude/ inexperiência do diretor. Mas há algum exagero na primeira meia hora, que beira o incômodo. A câmera excessivamente tremida e a dificuldade para vermos as expressões faciais de um personagem que tanto as usa, felizmente, são corrigidas quando o filme sai dos EUA e parte pro Japão. A passagem de uma cidade para outra, inclusive, é algo que o filme acerta – ainda que pareça pouco original. A idéia de percorrer caminhos, pegar a estrada, faz referência não só à turnê, mas também à própria trajetória de Caetano. Tanto as imagens que servem de passagem (metrôs, trens, estradas) quanto as tomadas de cada cidade, vão muito bem com as inserções musicais. O tempo dado às músicas lhes confere um tom de fala, é como se Caetano tivesse sendo entrevistado ao cantar Brasil Pandeiro durante um ensaio. Em outros momento, é simplesmente agradável, por exemplo, ver uma Nova Iorque para além dos blockbusters americanos ao som de Come as you are do Nirvana, cantado num inglês com sotaque baiano.

Aliás, o falar inglês de Caetano ilustra um traço de sua personalidade bastante interessante e que irá percorrer todo o filme. Vemos que ele fala bem inglês, mas que seu acento baiano continua presente, sem torná-lo ridículo. Essa ligação com a Bahia, parece algo bastante sincero. Não se trata de alguém que busque uma identificação artificial com sua terra natal para fazer disso um personagem. O homem pop que se lança sem medo, reafirma a todo tempo sua origem na pequena cidade de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. E o faz, não de forma idílica e nostálgica. O faz, sem mitificações, para esclarecer como ter vivido em Santo Amaro até os 18 anos faz dele o que é hoje, tanto quanto ter sido vaiado em um festival da canção. É o que vemos, por exemplo, quando ele admite que se deixou intimidar na entrevista para uma TV americana. Explica que não conseguiu de despir do rótulo de ser um cantor do sul do mundo lançando um disco em inglês nos EUA, algo que talvez não lhe tenha sido imposto pelos americanos, e sim pelas memórias do garoto de Santo Amaro.

Na era do mundo globalizado e “pop” ter origens e se identificar com algo que não seja a marca da calça jeans é cada vez mais raro. A efemeridade das relações e experiências, tão cultivadas nesse nosso tempo, por vezes oculta a importância que tem o passado em nossas vidas, mais do que isso, que não fazemos a vida a partir do nada, mas a partir do que está posto, do que nos é colocado.

Coração Vagabundo nos faz pensar em o que leva um personagem como Caetano contar, durante uma caminhada no Japão, que já quis ser cremado, mas que hoje o que mais deseja é ser enterrado em Santo Amaro. Talvez esteja aí o grande segredo da trajetória do cantor que pode tudo: fazer tudo sem perder suas referências.

2 comentários:

Daniel disse...

Que isso ein? Excelente crítica do filme. Fiquei até com vontade de assistir. Parabéns Mari.

carol disse...

Daniel roubou meu comentário. ¬¬