sábado, 28 de agosto de 2010

meu anjo da guarda deve ser workaholic

minha aventura urbana de ontem à noite, tintim por tintim:

- me emputeço com o trânsito, com a falta de dinheiro e por não ter conseguido ir no back2black, pego o celular, ligo o rádio, ponho meus fones de ouvido e venho andando da Maré, passarela 9 até a Praça XV

- no caminho uns moleques desses bem crescidos passam o rodo numa galera que eu acho que estava caminhando em direção à feira de São Cristóvão. Sinceramente, até agora eu não consigo entender porque eles me olharam e não fizeram nada... eu segui andando em frente, não tinha o que fazer, eles me olharam e apesar de eu estar com fones de ouvido e celular na mão, não fizeram nada, juro, inacreditável.

- paro no Estácio, mais puto ainda por passar em frente ao evento na Leopoldina, tomo duas cervejas, e ao final da segunda, não sei porque nem como, estava ainda com os fones de ouvido e entretido nos meus pensamentos, explode uma porradaria sinistra, garrafas quebrando, mesa voando, chamaram a polícia, um maluquinho que parece que mora numa favelinha nas imediações do sambódromo ficou mal, viu, mal mesmo.

- me dá uma dor de barriga desgraçada e eu tenho que usar um banheiro imundo e quente como o inferno em frente à Alerj, tendo que ouvir ainda brincadeiras e zoações de bêbados mijando.

- chego na Praça XV e descubro que meu riocard não tem saldo suficiente para a barca. As barcas não fazem como os ônibus que deixam vc passar e ficam com seu cartão sem saldo. Explico isso para uma vendedora conhecida de uma daquelas banquinhas em frente à estação das barcas e consigo dinheiro para atravessar a baía.

- obviamente sem dinheiro e imundo nessa caminhada maluca, vou pra casa tomar um banho com esperanças ainda de ir numa festinha na casa de uma amiga em Nikiti. Acabo de tomar banho e tal, eis que minha avó surge numa carreira desembestada apertada para ir no banheiro tadinha e, cara, quase, quase, por muito pouco ela não toma um estabaco feio, parecia uma bolinha de pinball batendo nas paredes.


Conclusão: pânico!! Não consegui sair de casa e fiquei a noite inteira acordado escoltando a véinha...

- dormi um pouco quase nada e acordei rimando...

Hoje de manhã fui dar uma bronca nela, disse que eu sei que ela estava apertada, mas que não pode correr e tem que usar a bengala! (porra!!!!), e ela fica rindo e diz para eu não me preocupar não, que Nossa Senhora não vai deixar ela cair, não...

Puta que pariu, sacanagem não, nessas horas que eu vejo de onde vem minha bravura doida e minha teimosia orgulhosa...

Então, tá bom pra vcs??!!!

Mais um capítulo da série "Bodvéi, bodvéi..." rsrs

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

neguinha?

Tem cada coisa que acontece que, puta que pariu, é foda.

Tenho uma amiga do facebook, dessas que são amigas reais de um amigo real e um dia concordam com uma posição ou um comentário virtual seu, se manifesta em seu favor, alguém envia uma solicitação de amizade e se torna uma de suas melhores amigas virtuais. Essa, em especial, eu nutria, ou nutro, sei lá, uma vontade e uma promessa de nos conhecermos no mundão dito real, encontro pelo qual eu alimentava, ou alimento, sei lá - alimento - expectativas eróticas. Nosso amigo real em comum já havia falado à beça dela, como quem joga um super trunfo erótico canalha (pernas, coxas, bumbum, quadril, seios, lábios, etc...rsrs).

Pois bem, essa semana minha querida amiga virtual me postou um texto no facebook dizendo que foi abordada pela pesquisa do censo do IBGE e que, ao ser questionada sobre sua cor e/ou raça, depois de pensar um pouco respondeu cantando em tom de galhofa 'eu sou neguinha', mesmo sendo branca como a neve, mais caucasiana do que a Nicole Kidman - na verdade, seguindo o papo Manderlay, que aliás tem tudo a ver com esse presente texto, ela está mais para Bryce Dallas Howard, a segunda Grace e ou a Dama na Água do Shyamalan...

O pior é que o idiota do rapaz do censo riu da piada e transcreveu-a solenemente, afirmando ainda que ela podia mentir à vontade. Na certa estava rolando um flerte de ambos os lados - além de uma estupidez e alienação inacreditáveis, ainda mais quando se sabe que o dito cujo passou por uma formação de pesquisador...

Porra, cara pálida, para que fazemos um censo, meu Deus do céu?? Para que será que servem suas informações?? Para termos uma ideia estatisticamente construída acerca da sociedade brasileira, seus arranjos, distribuições, configurações e desigualdades.... Para construirmos políticas públicas que dêem conta e superem essas desigualdades, certo?! Então fraudar ou sabotar uma informação no censo é sabotar todo esse processo, concordam??!!

Francamente. Não consegui ficar propriamente puto com ela. Ela me parecia meio ainda sem entender direito o que tinha acontecido, apesar de ter achado bacana, e tal. Fiquei bem mais revoltado de saber o tipo de entrevistador que está realizando essa pesquisa, do seu despreparo ou falta de noção do que está fazendo. Não concorda com a pesquisa, tem suas questões, faça-as ouvir noutro momento, estude, faça um mestrado, sei lá. Ou vai vender pó, vai roubar, vai fazer o que for, menos aplicar questionários do censo.

O pior foram os comentários do tipo: pois é, mandou bem, viva a raça humana, como fazem essa pergunta no Brasil... Como se não houvesse racismo no Brasil, como se a cor da pele não fosse um determinante de uma série de configurações sociais opressoras que milhões de brasileiros vivem, como se a discriminação racial não fosse uma realidade vivida cotidianamente em nosso país. Lamentável.

Há poucos dias escrevi sobre essa ideia de uma democracia racial e de como Caetano Veloso, citando Antônio Cícero, irmão da Marina - Marina Lima, a cantora, por favor - propunha adotar essa postura que considero no mínimo cínica e alienada como um mito propulsor dessa igualdade racial. Como se negar o racismo fosse transformar a sociedade num passe de mágica, como se viver ignorando e impondo uma visão não racista pura e simplesmente corrigisse as desigualdades concernentes ao componente racial na sociedade brasileira. E olha que ele diz não usar droga, hein... Eu que me entupi de ácidos, cogumelos, cocaína, maconha e álcool a vida inteira pareço perceber a realidade de maneira bem mais lúcida. Ou menos cínica e blasé.

Tudo bem, existe toda uma corrente mais elaborada que defende a adoção dessa linha de pensamento na formulação das políticas públicas segundo o argumento de que incluindo o componente cor junto a outras questões sociais você poderia corrigir uma série de desigualdades históricas sem a criação de um objeto específico "cor' ou 'raça' e o isolamento dessa variante. No entanto, o problema é que essa variante já está isolada, esse objeto já foi recortado, e só não vê quem não quer. Apesar da inegável miscigenação, elucidar o que está relacionado ao componente cor e raça não é criar o racismo no Braisl. Muito pelo contrário, é admitir que existe, observar suas consequências nefastas e procurar corrigí-las. Penso assim.

E penso ser triste ver tanta gente negando esse problema, e mais triste ainda ver que são todos brancos, ou predominantemente brancios caucasianos, moradores de bairros nobres da zona sul do Rio de Janeiro. Triste, mas compreensível, é verdade. Tal ideologia só poderia vicejar mesmo nessas localidades. Triste mesmo é o menino pretinho do morro querer ser branco, achar ser preto feio, saber que a polícia pára ele por conta de suas roupas, ethos e cor e ter introjetado goela abaixo essa ideologia perversa. Isso é triste. Isso me causa tristeza.

Já essa galerinha metida a vanguarda do pensamento me dá é nojo.

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Mas tudo bem, se houver oportunidade eu bem pego ainda de jeito a Bryce Dallas Howard neguinha entre aspas do facebook... rsrsrs

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Anteontem participei de um programa de televisão representando o Observatório de Favelas, onde trabalho. Fui pego de surpresa, estava no ônibus a caminho da Maré quando fui avisado que deveria participar desse programa.

Depois de me perder na Fiocruz e chegar em cima da hora todo suado, descobri que o programa se desenvolvia como um bate papo informal, a partir de provocações do apresentador.

Como sempre a coisa toda ocorre em três momentos distintos:
1 - stress pré-set de filmagens; esse momento é quando procuro antecipar todas as gafes possíveis e elaborar a minha fala grifando mentalmente o que não posso esquecer de falar e como. Esse momento, confesso, já está mais tranquilo para mim. Primeiro porque já não é a primeira vez que participo de um programa de TV ou de falar em público em geral. Em segundo lugar, confesso, lembro de Amana que me dizia com uma tranquilidade sincera que tudo daria certo, que eu sei falar bem em público e sempre mando bem nesses momentos, apesar do nervosismo antes da realização dos eventos.

2 - o programa propriamente dito que se divide entre o momento em que o apresentador combina em off o que irá perguntar; quando o programa começa e ele faz uma outra pergunta qualquer que só na cabeça dele tem alguma coisa a ver com a pergunta combinada em off; e os momentos em que o apresentador traduz o que eu falo da maneira que ele entendeu e eu obviamente discordo ou faço pequenas correções ao vivo e/ou ainda respondo com com um "mais ou menos" que o deixa meio constrangido mas ele disfarça, e por aí vai...

aliás é muito engraçada a forma como alguns apresentadores fazem perguntas longuíssimas, verborrágicas e sem sentido... aí fica aquele silêncio, ele com a expressão de "e então?"e eu com a expressão gritante de "puta que o pariu, o que que você quis dizer filho (a) da puta??"... Mas sempre acaba dando certo mesmo... O negócio é sair falando e responder o que você quiser e foda-se a pergunta...

3 - stress obsessivo pós-evento; o momento mais difícil. É quando eu fico reconstituindo mentalmente as respostas, investigando minhas falas para saber se eu fui bem, se não falei besteira, se não fui contra algum posicionamento institucional, etc.

E como sofro de ideias fixas, esse é o momento em que ainda me encontro e que motivou esse texto e motivará nalgum momento quase todas minhas conversas dos próximos dias...

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Não aguento mais ouvir as pessoas reclamendo do frio. Eu não reclamo, pelo contrário, acho que tem seus problemas, ir ao banheiro é uma merda, sair da cama, acordar cedo, trepar exige outra dinâmica, a garganta fica ruim e tal...

Eu estou gostando do friozinho, esse lapso de inverno carioca. É uma oportunidade de usar meus casacos que já estavam embolorando, posso beber café sem ficar suando horrores, chocolate quente, misto quente, sopa pelando, chego no trabalho arrumadinho, pego sol na rua numa boa, tomo vinhozinho, fico mais caseiro... tudo bem, ficar caseiro é mentira... mas o frio acaba remetendo a prazeres mais apropriados para os espaços fechados mesmo, mais aquecidos e tal.

Corre o risco de ficar meio afrescalhado, usar cachecóis e achar que está em Paris e ficar falando de Zizek, cinema europeu e existencialismos de botequim, mas nada que uma ida ao Barroquinho e uma dose de gengibre num botequim vagabundo do centro da cidade não cure...

Aposto que esse povo é o primeiro a reclamar do calor, da urgência do ar condicionado, da merda que é viver ensopado de suor e de como é ruim ficar já todo suado logo após acabar o banho... a galera gosta mesmo é de reclamar...

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O que me fez lembrar Raul...


terça-feira, 17 de agosto de 2010

Depoimentos e versos

Hoje tive que tomar uma decisão chata para mim. Ou melhor, ratifiquei uma decisão e movimento já tomados pelos outros antigos colaboradores desse blog em mais uma tentativa de ressurreição. Removi suas entradas como colaboradores.

Faveleiro e Capilo já haviam manifestado sua falta de assunto e de ânimo para escrever aqui. Clementina, talvez sua mais frequente colaboradora, nos abandonou por motivos que não cabem ser discutidos publicamente, apesar de já estarem amarelecidos pelo efeito do tempo e devidamente resolvidos e assentados. Pelo menos, creio eu.

Pois é... sobrou o bode véio que aqui vos fala.

Prometo colaborar com a assiduidade que a vida louca me permitir e que nossa ligação será infinita enquanto dure, parodiando o grande poetinha...

Reclamações e comentários me acusando de tirano virtual serão bem vindos. O silêncio dos 'excluídos' (seria melhor dizer auto-excluídos) somente irá corroborar o acerto de meu gesto.

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Quinta passada participei de um evento histórico, um ato em favor da devolução ou reabertura do espaço cultural da Cantareira para a população de Niterói. Fora a importância desse ato-show, foi uma oportunidade rara de encontrar velhas amizades de dez, vinte anos. Uns com mais barriga, outros com menos cabelos, uns grisalhos, outros cada vez mais pirados, enfim, sensacional.













Toquei no Bloco do Vigário. Ou melhor, enganei tocando caixa no Bloco do Vigário. Eu tinha bebido e fumado tanto, empolgado e eufórico com os incessantes e festejados encontros que quando fui tocar meus braços já não me obedeciam e foi foda pra segurar a pressão. A molecada do bloco é foda, todos cascudos de baterias de escolas de samba. No entanto, fui raçudo, não cedi e lutei até o final... Ainda que com muitos knock downs, deu pra ganhar até moral com a galera... rsrs

Uma coisa engraçada, ou nem tanto, é a galera que me pergunta o que houve comigo que estou tão gordo, e tal. Engraçado, ou nem tanto, porque se tratam de pessoas que me conhecem há muito tempo e já me viram até mais gordo do que estou agora. Lamento a forma como hoje em dia as pessoas tratam os pesos a mais como uma aberração física, quase uma deformação de caráter.

Minha vontade é mandar todos que me vem com esse blá, blá, blá pra puta que pariu. Mas relevo, brinco, finjo que não é comigo e somente me exalto ou saio fora se a pessoa insistir, me mandar fazer dieta, me cuidar ou qualquer outra bosta dessa. O pior é que eu sei que no fundo a intenção é boa...

Bom, como bem sei que de boas intenções o inferno já está cheio, eu quero mais é que vão todos à merda, pra casa do caralho e que fiquem bem gordos ou que sejam precocemente proibidos de comer e beber o que gostam... e, claro, que obedeçam...

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Uma poesia pra não perder o hábito... a segunda parte eu postei recentemente no facebook:

Uma doideira assim qualquer sem nome

Há momentos
em que o som
da minha respiração
ensurdece e atrapalha
o pensamento

Noutros

a ventania enfurecida das idéias
varre de mim
minhas lembranças mais alertas

Nado
num mar calmo
de onde não concebo
planos
metas
tarefas
contas
datas
senhas
limites


Gosto assim
quando me esqueço de mim
e penso que mereço
bem mais
do que cabe no pensamento

Se o devaneio só existe
fora do encadeamento
racional cotidiano
– vivo em fuga!!
e acho no barato que me dá
um barato
essa ausência

O espaço
onde não respiro
é ensurdecedor
ao pensamento

que é todo em si sem nome:

nem meu

nem seu

nem nosso...


Longe
outro
estranho
de outro
abstrato
endereço
me olha
no espelho
ao avesso

– gosto quando acordo
e não me reconheço.

****

Há uma mulher deitada
ao meu lado
ronronando
um ronronar tão belo
num corpo em curvas
...de violoncelo

Suas nádegas redondas
macias e pedintes
gritam por carinho
- e eu faço...

A mulher desperta
serpenteando
sua volúpia matinal
e pronuncia meu nome
enquanto afaga meu corpo

É estranho quando acordo
e não reconheço
onde deito
- mas é muito bom acordar
e lembrar de tudo
desse jeito...

Gaiola das Cabeçudas MTV

porque geral segue sua nau...


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Manderlay, etnocentrismos, racismos e Caetano...

Acabei de ver 'Manderlay', filme de Lars von Trier e dica já antiga da minha ex-mulher. Realmente é um filmaço. Eu tinha ficado com uma certa repulsa e agonia com relação ao universo dramático deste diretor dinamarquês depois de ver 'Anticristo'. Agora até confesso que mudei em certa medida minha opinião.

Não vou contar a história dos filmes, mas o enredo do Anticristo, que usa o símbolo feminino, aquele círculo com uma cruz embaixo no lugar do segundo t na capa do filme em seu nome original em inglês, Antichrist, justifica em certa medida toda a bizarrice e violência da película. Querem saber por quê? Vejam o filme, ora essa, e choquem-se também como eu, Cannes e todo mundo que viu esse filme sinistro...

Bem, o importante é que num primeiro momento eu achei exagerada e desnecessária as cenas de automutilação e outras bizarrices, mas, pensando bem, faz sentido com o enredo e o rumo da história, apesar de serem talvez excessivamente violentas, explícitas e chocantes. De mal gosto, eu diria, embora, pensando agora de cabeça fresca e sem sentir dor alheia - variante contorcida e traumatizante da vergonha alheia - façam sentido.

Em 'Manderlay', novamente temos um mesmo ambiente experimental, com o cenário inusitado e teatral, que impõe a utilização de vários elementos de mímica, presente também em Dogville, filme do qual, aliás, é uma continuação, sendo a segunda parte de uma trilogia anunciada e ainda não concluída pelo autor. Novamente um tom de fábula criado pela conjunção de um narrador em off, o caráter surreal e experimental do cenário, um clima de sombras e contrastes, os cortes abruptos nos planos sequenciais e diálogos, além da própria organização do roteiro em capítulos com títulos que sugerem uma argumentação filosófica, nos colocam uma série de problemas reais e contemporâneos.

Aliás, eu diria que uma das principais virtudes dessa trilogia é essa sua opção experimental pela fábula, por não abrir mão de uma narrativa surreal e ficcional para expor problemas atuais. No final, causa incômodo um certo nonsense e absurdo da situação e de uma série de discursos e argumentos quye encontramos cotidianamente em jornais, nos locais de trabalho, nas campanhas políticas, bares e, o melhor de tudo, em nossos próprios discursos. É um "nosso lugar" de branco e ocidental, portador de um senso comum sustentando diversas posições que muitas vezes já não pomos em questão por assumirem um caráter 'indiscutível' cotidianamente, acerca de temas como liberdade, democracia, justiça, dentre outros que o autor fará surgir como problemas abertos, não resolvidos, e os inflama, jogando-os em nossa direção como coquetéis molotov. Nessa dança surreal das cadeiras, ele nos toma todos os assentos possíveis e nos manda embora da trama como quem nos passa uma rasteira bem dada. Assentos, por sinal, já de antemão inexistentes em sua obra e escolha cenográfica.


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Lembrei do Caetano Veloso e do eterno debate sobre o mito da democracia racial brasileira. Caetano, neste domingo, fez uma provocação a Liv Sovik, pesquisadora da ECO/UFRJ que aponta as diversas perversidades existentes na noção disseminada de que vivemos na sociedade brasileira um racismo mais leve ou menos violento, e que o componente cor ou raça não influi tanto no cotidiano e nas histórias pessoais dos brasileiros.

Não sou tucano, logo não fico em cima do muro: não concordo com essa tese e sou, inclusive, defensor das cotas raciais em universidades e onde mais for preciso uma intervenção do Estado na sociedade na forma de políticas públicas em prol de uma igualdade social, racial, etc. Caetano assume outra posição, e questiona o que as diversas cotas raciais existentes nos Estados Unidos produziram de mudança nas mentalidades e mesmo no status quo da sociedade americana.

Não li Gilberto Freyre, não li nenhum outro grande pensador que defenda o mito da democracia racial, o que torna em certa medida capenga qualquer explanação que eu arrisque formular a seu respeito. No entanto, o já mais nem tão doce, muito menos bárbaro, mas sempre provocador em sua verve tropicalista, o baiano conseguiu me provocar com uma colocação sua, ou melhor, uma citação do Antônio Cícero: a de que o mito da democracia racial deveria ser interpretado como uma espécie de mito propulsor.

O que me traz de volta à Manderlay - e chega a ser uma ironia eu ver justamente esse filme hoje depois de ler e me encucar com essa argumentação do Caetano.

A forma como o filme de desenvolve tem muito a ver com uma crença numa democracia racial possível de ser produzida com um decreto ou com uma simples revogação e abolição da escravatura. Apesar desta proposição ter certas nuances mais calcadas numa convivência entre as raças marcada pela mestiçagem, no caso brasileiro, a questão colocada pelo filme é, por um lado, as dificuldades de superação das marcas da violência social existentes em anos de práticas escravagistas sustentadas por teorias eugênicas que apontam para um projeto civilizador branco e eurocêntrico. Por outro, indica como a ideia de uma superação imediata e forçada das marcas e rancores produzidos nesse período são a continuação desse projeto civilizador em sua face cínica e igualmente violenta. Apontam para uma abolição dos brancos, de uma superação das mágoas, da culpa e de um apagamento perverso das condições que justamente impedem a vivência de uma democracia racial. Negar essas perversidades continua significando atropelar toda uma questão histórica formadora do Brasil e do mundo tal como o vivemos hoje em dia, além da perpetuação das desigualdades nas relações de força e da dominação exercida por grupos raciais específicos sobre outros.

O mundo globalizou-se e homogeneizou-se toscamente através do estupro, da pilhagem, da dominação colonial e escravização dos ditos povos bárbaros ou inferiores. E isso não se muda ou supera de uma hora para outra. Reconhecer essa dívida histórica não é nenhuma legitimação do ressentimento, pelo contrário.


[Engraçado, eu ia falar agora que esse ressentimento se produz e reverbera através dos movimentos racistas ao contrário, como muitas vezes ouvimos falar... Não existe racismo ao contrário, existe racismo e pronto, seja para onde for apontada sua irracionalidade raivosa.]

É lógico que temos que ter o mito da democracia racial como um mito propulsor - mas como horizonte ético, como utopia. Porque do contrário, apontando-o como presente e original, negamos as vicissitudes históricas e afirmamos ainda nosso racismo perverso por linhas tortas e falsas dizendo que um dia chegará a vez do negro - mas que primeiro ele deve escolarizar-se e ascender socialmente tal como uma etnia bárbara que passa por um processo civilizatório, globalizado e modernoso...

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Por fim, possíveis leitores dessa mídia teimosa, assistam 'Manderlay'... pode deixar que eu não explanei o final, não: ele inelutavelmente se imporá como um soco no estômago... aliás, bem como tudo o que eu já vi na obra desse dinamarquês maluco chamado Lars von Trier...